Como sempre, é de atender.
Hoje foi dia de devolver Poeta Chileno à biblioteca. Animou-me a perspectiva de poder levar a outros leitores o mesmo entusiasmo que me fez sentir, mas custou despedir-me dele, um pouco como se de uma pessoa se tratasse. É, também essa, a magia dos livros.
Começar o ano com duas maravilhas, coisas muito boas, uma coisa assim-assim e um bocejo. Se estiverem realmente interessados em perceber a correspondência, podem sempre espreitar @liber._dade .
Quedas felizes, de Evguénia Bielorrussets, é um livro de contos publicados na Ucrânia em 2018. Começa a prometer agitar o leitor (tirando até vantagem da atual situação vivida na região), mas acaba a fazer umas cócegas. É pena.
– Leve-me consigo, ladrão.
– Vou para muito longe.
– Era esse o meu desejo.
Vou mudar a cozinha, Ondjaki
Sobre o afastamento que a proximidade pode provocar. Sobre a proximidade que o afastamento pode revelar. Sobre o muito que é dito em silêncio. Um livro de relações essencialmente familiares, mas não só. Uma boa surpresa, a aguçar curiosidade para a restante obra de Valeria Luiselli.
| É um conto (a caminho de novela) com apenas dois defeitos – o segundo, talvez consequência do primeiro: é curto e não alcança tudo o que prometia a determinada altura. A escrita de Joyce acentua a sensação de brevidade do texto e fica a apetecer mais. Ulisses, um dia? |
Imaginemos que alguém decide fazer um cozinhado. Uma cataplana de marisco, por exemplo. Encontra uma belíssima receita e não poupa nos ingredientes: o melhor camarão, vários tipos de bivalves frescos, tudo cuidadosamente escolhido. Depois, confiante nas escolhas que fez, opta por juntar tudo numa taça ao mesmo tempo e envolver preguiçosamente durante uns segundos, antes de levar ao microondas por uns minutos. Fica a saber a marisco, mas…
O roubo é o maior elogio que se pode fazer a uma coisa.
Vladimir Nabokov, Desespero
Depois da belíssima surpresa que foi a leitura de Jezabel, era inevitável voltar à prosa de Irene Némirovsky. Com David Golder já não houve efeito surpresa, mas a admiração foi a mesma ou até maior, considerando que se trata do primeiro romance da autora, escrito aos vinte e seis anos. É, novamente, uma narrativa difícil de largar. É, novamente, uma exposição do ressentimento que sempre marcou a relação de Irène com a mãe. É um texto sem excessos, na medida certa em tamanho e sóbrio na linguagem. É, novamente, um grande livro.
Nascer judia, em Kiev, às portas da revolução russa. Ainda que rica. Mudar-se para a Finlândia e posteriormente para França. Estudar na Sorbonne e começar a escrever aos dezoito anos. Ter uma mãe que a relega aos cuidados de uma preceptora, para poder viver a juventude que teima em não querer deixar fugir. Ainda que rica. Casar-se. Ter uma filha aos vinte e seis anos, precisamente quando uns editores colocavam um anúncio num jornal, na tentativa de saberem quem seria o autor de um manuscrito que haviam recebido e que muito os havia impressionado. Apresentar-se aos editores como a autora do manuscrito – aos vinte e seis anos, recordo -, pedindo desculpa pelo atraso por ter acabado de dar à luz. Ver o seu livro publicado e adaptado ao cinema. Ter uma segunda filha. Publicar mais alguns livros. Ver o marido ser afastado do trabalho e os seus escritos deixarem de ser publicados devido às suas raízes judaicas. Ver a chegada dos movimentos nazis a Paris. Refugiar-se numa pequena vila. Ser detida. Ser enviada para Auschwitz e morrer de tifo, um mês depois, aos trinta e nove a anos. Ter mais alguns livros publicados postumamente. Isto é sobre viver.
David Golder e Jezabel, que já li. O baile, Suite francesa, O senhor das almas e O vinho da solidão, que quero muito ler. Isto é sobreviver.
No primeiro capítulo deste livro, Roth escreve a Zuckerman, um dos seus personagens, para lhe pedir opinião em relação à autobiografia que escreveu e que pretende publicar. Os capítulos seguintes apresentam-nos uma autobiografia competentemente escrita, mas essencialmente interessante para os leitores do romancista. No entanto, de Roth não se pode esperar apenas competência e o melhor fica guardado para o fim, quando Zuckerman responde ao seu criador. Aí, a até então competente autobiografia aproxima-se da ficção e ganha outra dimensão.